Do fomento ao processo estrutural frente à Covid-19

Ana Paula Alves Alcântara

O momento atual exige que o processo civil seja repensado.

I – Síntese Introdutória

A covid-19 terá como consequência, ainda um tanto inimaginável, o surgimento de demandas complexas cuja solução jurisdicional não será alcançada pelo uso do sistema processual civil comum, bipolar e linear. Assim, sabendo que o processo estrutural tem sua origem em um estado de desconformidade (DIDIER; BRAGA; OLIVEIRA[1]), conclusão é não outra de que o cenário atual da pandemia é o momento propicio para a academia desenvolver estudos sobre essa nova tipologia de litígio (COTA[2]), bem como que os operadores do direito repensem os métodos procedimentais atuais.

II – Origem do Processo Estrutural

É importante rememorar que o processo estrutural guarda raízes históricas em decisões nortes americanas, possuindo como caso emblemático o julgamento conjunto, pela Suprema Corte Americana, de quatro ações individuais sobre a segregação racial escolar, conhecido como Brown v. Board of Education, em meantes das décadas de 1950-1960 (FISS[3]).

Basicamente, crianças negras precisavam atravessar as suas respectivas cidades para poderem estudar em “escolas de negros”, quando na verdade existiam outros centros educacionais mais próximos, porém “de brancos”. Assim, os pais desses alunos negros viram as matrículas dos seus filhos, em escolas de brancos, serem negadas em virtude da segregação racial – matéria que desafia políticas públicas e origina problemas estruturais –, então, demandaram a questão judicialmente.

Em que pese os casos terem sido primeiramente julgados improcedentes, ao chegar na Corte houve o pronunciamento pela inconstitucionalidade da negativa de matrícula e, “em poucos anos, a Corte declararia inconstitucionais também a segregação em ônibus, campos de golfe e praias públicas” (VIOLIN[4]).

Isto é, a temática exigia, por natureza, mais que do que a mera procedência ou improcedência do litígio. Foi também necessário estudar como a decisão teria efetividade, ou melhor, executividade. Nesse aspecto, as medidas reestruturadoras foram fomentadas através do diálogo entre diversos entes públicos e os próprios centros educacionais, resultando, ainda que lentamente, na amenização da segregação racial norte americana.

III – Conceituação e Características do Processo Estrutural

Partindo desse exemplo emblemático, talvez fique um pouco mais fácil conceituar o processo estrutural. Em que pese ainda ser um conceito em aprimoramento, Vitorelli entende que o processo estrutural seria:

um processo coletivo no qual se pretende, pela atuação jurisdicional, a reorganização de uma estrutura burocrática, pública ou privada, que causa, fomenta ou viabiliza a ocorrência de uma violação pelo modo como funciona, originando um litígio estrutural.[5]

Em complemento, o processo estrutural pode ser compreendido como aquele que “lida diretamente com um problema estrutural, o qual pressupõe a existência de um estado de desconformidade que necessita ser resolvido através de um conjunto interligado de medidas tendentes a um suposto estado ideal” (DIDIER; BRAGA; OLIVEIRA[6]).

Nesse sentido, partindo das conceituações citadas, entende-se que processo estrutural “surge” quando o judiciário é provocado a manifestar-se sobre um problema estrutural (situação de permanente desconformidade), normalmente devido à carência ou ineficácia de políticas públicas, tendo como consequência à violação de garantias fundamentais e cuja solução não poderá ser alcançada em apenas um ato, mas dependerá de uma série de medidas reestruturadoras prolongas no tempo.

Seguindo esse raciocínio, no que toca às suas características, Violin o aborda como:

uma demanda multipolarizada; orientada para o futuro; formada por pretensões difusas; baseada em direitos fundamentais cujo conteúdo requer concreção que visa à reforma global de uma instituição social; cuja implementação exige ações que se protraem no tempo; conduzida por juiz e partes em cooperação.[7]

Em termos mais didáticos, parece ainda mais adequado considerar o processo estrutural como tendo 5 (cinco) características essenciais, todas elas desenvolvidas/defendidas por Fredie Didier, quais sejam (i) um problema estrutural que culmine em (ii) uma transição de estados, já que o núcleo atingido pelo problema estrutural sairá dele em caminho a uma reestrutura, de tal forma que o procedimento deve ser (iii) bifásico, sendo que em um primeiro momento o julgador analisará se o lide tratada de fato tangencia um problema estruturante e, posteriormente, quais medidas necessitarão ser implementadas (em similaridade ao que ocorre na falência e recuperação judicial), assim, devido a tal complexibilidade procedimental, as normas processuais precisarão ser (iv) flexibilizadas, a ponto de permitir o próprio desenvolvimento dos atos processuais. E, por fim, todas as medidas serão construídas tendo por base a (v) consensualidade, vez que as partes atingidas pelo problema estrutural também precisarão participar da construção de sua solução (DIDIER; BRAGA; OLIVEIRA[8]).

Por tudo isso, observa-se uma característica fundamental no processo estrutural: sua extensão no tempo. A decisão estruturante dependerá, por essência, da implementação de diversas medidas, o que, em princípio, poderia ser encarado como uma violação à celeridade processual. Todavia, é preciso ter em mente que “há processos que precisam demorar, sob pena de diversas garantias processuais serem fulminadas ou de se alcançar um resultado esdrúxulo (ou inútil)” (MARÇAL[9]), como no caso de demandas policêntricas.

IV – Processos Estruturais Emblemáticos no Brasil

Ao pensar no processo estrutural no Brasil, torna-se importante ressaltar que aqui existem dois casos emblemáticos: (i) aquele originário do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG (COTA[10]) e, (ii) a ACP do Carvão, em Criciúma/SC (ARENHART[11]), sendo perceptível, em ambos, a necessidade de decisões prospectivas, voltadas preponderantemente para ações futuras (NUNES; COTA; FARIA[12]).

Em relação ao caso Samarco, como de conhecimento notório, sabe-se que em 2015 ocorreu a ruptura da barragem de rejeitos de Fundão, localizada em Mariana/MG, tais rejeitos percorreram pelo Rio Doce até desaguarem no litoral capixaba.

Em virtude de tal Incidente, a questão foi enfrentada pelo judiciário mineiro, de modo que as medidas reestruturadoras do dano ambiental e social foram construídas a partir do diálogo entre a mineradora, Ministério Público, Estado de Minas Gerais, órgãos ambientais e partes atingidas, originando inclusive a criação da Fundação Renova através do TTAC firmado.

Igualmente, no caso da ACP do Carvão (Criciúma/SC), em que se reclamavam danos decorrentes da degradação da atividade minerária, foi proferida sentença impondo aos réus um projeto de recuperação da região e, após as vias recursais, em momento executivo, foi criado o Grupo de Assessoramento Técnico do Juízo (GTA), específico para a criação de técnicas e estratégias de enfrentamento ao problema (ARENHART[13]).

Portanto, os impactos foram tão complexos e policêntricos que não bastaria a justiça federal reconhecer a procedência dos pedidos iniciais, mais que isso, foram necessárias as adoções de medidas sérias e responsáveis na busca pela amenização dos efeitos, ou, ainda, na busca pelo retorno da conformidade.

V – Impactos da Covid-19 e Fomento ao Processo Estrutural

Tendo por base as ideias apresentadas até aqui, não é difícil imaginar as inúmeras situações fáticas em que o poder judiciário poderá ser acionado em virtude da covid-19.

No momento, inclusive, discute-se sobre os critérios a serem adotados na estruturação do auxílio financeiro emergencial e suas consequências, como exemplo, as diversas filas[14] para regularização dos CPFs daqueles aptos economicamente para se cadastrarem junto à caixa economia federal, mas que não conseguem fazê-lo em virtude da irregularidade documental.

Igualmente, ter-se-á inúmeras rupturas contratuais, das quais fluirão as mais diversas consequências que, em termos jurídicos, poderão ser amenizadas para um dos contratantes por aplicação da “força maior”, porém, em termos fáticos, levará a perda exponencial de poder econômico das mais variadas entidades.

Isso é, o que se pretende dizer é que apesar de um tanto inconcebível as consequências da pandemia que assola o mundo, muitas delas gerarão problemas estruturais, cujas regras estáticas do código de processo civil não serão suficientes (exemplo, será necessário repensar o conceito de pedido, o princípio da congruência, as medidas executivas, dentre outros), decorrendo daí a relevância do estudo do processo estrutural e as multiplicidades de estratégias para a construção de decisões estruturantes efetivas e capazes de amenizar os efeitos da covid-19.

VI – Conclusão

Diante de todo o exposto, compreende-se que a covid-19 certamente atingirá diversas esferas sociais e econômicas, de modo que muitos dos litígios originários das suas consequências (aumento da crise sanitária, eventuais mortes em cascatas nos sistemas prisionais, rupturas contratuais desenfreadas, etc.) demandarão um procedimento além daqueles comumente utilizados na sistemática processual civil clássica, de tal forma que o processo estrutural se revela como o meio adequado para a solução dessas demandas com causalidade complexa (NUNES; COTA; FARIA[15]), oportunidade em que a academia processual deve fomentar ainda mais o estudo dessa nova tipologia.

A esta altura de los tiempos resulta imprescindible contar con una participación más intensa de los ciudadanos e fin de obtener una mejor gestión de la cosa pública, lo cual dispara inmediatamente la necesidad de pensa em instrumentos adecuados que habiliten tal participación. (VERBIC, Francisco[16]).

Do fomento ao processo estrutural frente à covid-19 – Publicado em 24/4/2020 – Clique aqui para acessar o link da publicação no Migalhas.


REFERÊNCIAS:

[1] DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. JusPODIVM. Salvador, 2020.

[2] COTA, Samuel Paiva. Dissertação de Mestrado. Do Pedido e da Participação: proposições para o desenvolvimento de uma teoria acerca dos Processos Estruturais. Ouro Preto, 2019.

[3] FISS, Owen. As formas de Justiça. In: WATANABE, Kazuo (et al) (ortg.). O Processo Para Solução de Conflitos de Interesse Público. JusPODIVM. Salvador, 2017, p. 121.

[4] VIOLIN, Jordão. Dissertação de mestrado. Processos Estruturais em Perspectiva Comparada: a experiência norte-americana na resolução de litígios policêntricos. Curitiba, 2019, p. 31.

[5] VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista dos Tribunais Online, vol. 284/2018.

[6] DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. JusPODIVM. Salvador, 2020, p. 788.

[7] VIOLIN, Jordão. Dissertação de mestrado. Processos Estruturais em Perspectiva Comparada: a experiência norte-americana na resolução de litígios policêntricos. Curitiba, 2019, p. 33.

[8] DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. JusPODIVM. Salvador, 2020, cap. 14,

[9] MARÇAL, Felipe Barreto. Processos Estruturantes (Multipolares, Policêntricos ou Multifocais): gerenciamento processual e modificação da estrutura judiciária. Revista de Processo, vol. 289/2019.

[10] COTA, Samuel Paiva. Dissertação de Mestrado. Do Pedido e da Participação: proposições para o desenvolvimento de uma teoria acerca dos Processos Estruturais. Ouro Preto, 2019, p. 146.

[11] ARENHART, Sérgio Cruz. Processos Estruturais no Direito Brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão. Revista de Processo Comparado. Disponível em: <http://revistadeprocessocomparado.com.br/wp-content/uploads/2016/01/ARENHART-Sergio-Artigo-Decisoes-estruturais.pdf>, acesso em 15/4/2020.

[12] NUNES, Leonardo Silva; COTA, Samuel Paiva; FARIA, Ana Maria Damasceno de. Dos Litígios aos Processos Estruturais: pressuposto e fundamentos. In: FARIA, Juliana Cordeiro; REZENDE, Ester Camila Gomes Norato; NETO, Edgar Audomar Marx. Novas tendências, diálogos entre direito materiais e processo: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. D’Plácido. Belo Horizonte, 2018, p. 372

[13] ARENHART, Sérgio Cruz. Processos Estruturais no Direito Brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão. Revista de Processo Comparado. Disponível em: <http://revistadeprocessocomparado.com.br/wp-content/uploads/2016/01/ARENHART-Sergio-Artigo-Decisoes-estruturais.pdf>, acesso em 15/4/2020.

[14] Disponível em: < https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/13 /agencias-da-receita-federal-do-rio-tem-filas-para-regularizar-cpf-devido-ao-auxi lio-emergencial-de-r-600.ghtml >. Acesso em 15/4/2020.

[15] NUNES, Leonardo Silva; COTA, Samuel Paiva; FARIA, Ana Maria Damasceno de. Dos Litígios aos Processos Estruturais: pressuposto e fundamentos. In: FARIA, Juliana Cordeiro; REZENDE, Ester Camila Gomes Norato; NETO, Edgar Audomar Marx. Novas tendências, diálogos entre direito materiais e processo: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. D’Plácido. Belo Horizonte, 2018, p. 368.

[16] VERBIC, Francisco. Ejecucion de sentencias em litigios de reforma estructural-dificultades políticas y procedimentales que inciden sobre la eficácia de estas decisiones. Congresso Nacional de Derecho Procesal. Córdoba, 2013, p. 20.

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